Em Salvador,
já é carnaval… Os blocos estão na rua, a praia esteve vazia, os cidadãos comuns lentamente esmorecem em frente à tv… Alguns, precavidos, fugiram da cidade. Talvez buscando outras aventuras e opções. Outros , deslumbrados, chegam sem parar no aeroporto e na rodoviária. A BR está lotada, tanto para quem vai como para quem vem. Não há passagens.
Houve mais batidas na Paralela, muitos carros sofreram prejuízos. O som dos adolescentes ou muito jovens ecoa como um trio em plena av. ACM. Muita velocidade, abadás coloridos, cerveja na mão. Alegria em risos quase desvairados. As coxas estão de fora, o verão tinindo e nem parece ainda que as águas de março estão para chegar. A expectativa toma conta de todos. No banco 24h, olhares furtivos para as quantias que cada um retira da conta. Um certo medo de assalto, um zelo a mais e precaução.
Há expectativas, muito dinheiro foi investido. É preciso que se beije muito, que se dance muito, que se grite e pule cada vez mais alto. Os shorts escondem além do dinheiro da bebida e do táxi ou estacionamento na volta, um vidrinho clandestino de lança-perfume. Os lenços vão amarrados nos pulsos ou dentro de bolsos. O velho tênis, amanhã imundo, também será testemunha do quanto se andou, correu, brincou, ficou.
A libido anda solta, os amantes já se encontraram, as camisinhas são distribuídas nas ruas. O corpo clama pela liberdade que anseia o ano inteiro para, desprovida de freios, arrasar na avenida como a apoteose de um instante incomum. Muitos passam a mão, outros agarram mesmo, umas sorriem convidativas, outras em seu radar escolhem o próximo contemplado. Todos só querem saber de excessos.
Em casa, aos que não agradam a expansão catártica de si mesmo, resta a poltrona encardida, a medíocre programação da tv e a possibilidade de uns dias longe do trabalho. Uma outra libertação também… não?
Alguns, alugam suas casas, se empilham na de parentes e dividem o suposto lucro que os salvará de mais um cheque sem fundo. Aquela menina pediu um empréstimo para comprar chiclete com banana e pagará em 10 vezes no banco. Os abastados, nada gastaram: foram todos convidados. São todos importantes, todos requisitados e, pela oferta, terminam por desperdiçar as pulseirinhas ou vestimentas que lhes garantem passe livre, enquanto outros dariam muito para tê-las.
É festa também, é muita festa. É muita alegria, é muito arrepio, é a certeza de que é preciso exagerar para fugir do medíocre cotidiano, da medíocre certeza de que se é apenas mais um ser humano. Anônimos, na multidão, sentem exatamente este prazer: o de se manterem ocultos no meio da rua… ninguém se preocupa com ninguém, nem consigo. Cada um é todo tudo aquilo que anseia reconditamente.
Olha-se para cima, para o trio, não para a trindade: divina só Daniela, Ivete ou outra celebridade que surja. É bom, pouco se olha para os lados, para baixo, para dentro de si. É momento de expor-se, mostrar-se. Não se deve pensar (pensar para quê?) , não se deve parar, não se deve sofrer. A vida é bela e a multidão arrepia com o canto uníssono. Os atabaques embalatimbalam todo o gueto espremido nas ruas de Salvador. Os camarotes apreciam privilegiadamente o espetáculo. Se há brigas, 21.000 policiais estão nas ruas. Cacetetes, armas, capacetes. Respeito e truculência. Segurança utópica.
Famílias inteiras se esbaldam enquanto assam queijos proibidos pela brasa, calabresas de um real, churrasquinhos de vale (e passe…). É picolé, cerveja, água mineral, refrigerante… A renda aumenta, a mãe ganha um beijo de Tatau, rebola com o Psirico e aplaude aquele cantor Bono de quem ela nunca ouviu falar, mas que deve ser bom porque passou na Globo depois da novela. Dormem na rua, demarcando sem terra o seu pedaço de avenida conquistado a duras penas e madrugadas em fila atrás da licença da prefeitura.
É carnaval… Pode haver pierrots, pode haver colombinas, há palhaços com certeza. Há também público, de um lado e de outro. Vale a pena sim. Vale a pena não. O pão está caro, mas o circo abriu-se em tenda onde cabem todos na rua.
É hora. Vou dormir? Não, vou sair também. Da cidade? Não. Cantaram que atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Vou lá ver. Depois eu conto.
Alena Cairo
24/02/2006