Resisti o quanto pude. Enrolei o máximo possível. Hoje é sábado, entretanto, o sol da Bahia nos faz esquecer que talvez seja mesmo inverno. O dia está claro. A vida continua. Os carros passam. O telefone toca. Os bares vão ficar cheios daqui a pouco. Peguei nas provas. Larguei-as. Li bula de remédio. Ouvi música. Cansei. Tomei um banho de uma hora. Gastei hidratante ao máximo. Pus as roupas para lavar. Bebi água. Li um pedaço de livro. Mergulhei num artigo inteiro.
O cenho está franzido. Decidi fazer à tarde o molho de tomate. Lembrei a pizza de ontem. Levantei. Sentei. Levantei. De novo e de novo. Mais música. Mais pedaço de livro. Um nó na garganta. Então o poema que declamei na adolescência, teatrinho de colégio, escapou dos labirintos da memória e repetiu-se intenso:
“Ah, no entanto, pomba, varou-te a flecha do destino. Astro, engoliu-te o temporal do norte. Tecto, caístes. Crença, já não vives… Correi, correi ó lágrimas saudosas… legado acervo da ventura extinta, dúbios achortes que a tremer clareiam a lousa fria de um sonhar que é morto…” *
É morto. É finito. É findo. Quando as pessoas morrem, sempre alguém se entristece. Quinta-feira, numa premonição, ironia da vida ou num risco da intuição da Oxum que há em mim, abri meu guarda-roupa e me deparei com uma meia pequetitita, de bebê. Branquinha , lindinha, com a possibilidade única de caber ali apenas um pezinho de um ano de idade. Assustei-me, não entendi nada.
Levei um dia inteirinho para entender que havia a possibilidade do meu edredon ter engolido na fazenda semana passada a “meinha” do meu priminho Dudu que pintava e bordava no meu colo… Talvez o meu edredon tenha raptado o pedaço de sonho que ele acalenta um dia sentir em minha cama.
Intriguei-me com o furto e, mais ainda, com a aparição repentina. Até que tive o corte: nada vai mal ao Dudu, graças, contudo a bebê que há um mês carreguei no meu colo e que brincou com meus cabelos e que riu descaradamente para mim, só para mim, e que falou meu nome errado, e que bateu palminha e que sorriu, sorriu, sorriu… essa bebezinha simplesmente morreu quinta-feira. Assim. Morreu. Virose, bactéria, maus diagnósticos, a vida, Deus, carma, encosto, sei lá sei lá sei lá… Uma mãe chora, um pai não sabe o que fazer, um irmãozinho pergunta pela pequena de quem ele ia cuidar a vida inteira, a família fala palavras de consolo inútil tentando se auto confortar. Ai! Foi demais para meu peito já cansado de guerra… E à noite, outro projeto de vida morreu. Minha grande amiga perdeu o bebê que ia no seu ventre.
Morrerem velhinhos, juro, creio o natural, o lógico, o normal. É clichê assim comentar, mas não dá para engolir nesta cabeça ocidental a morte de crianças e jovens e adultos. Estou entalada. Não queria escrever isso. Mas quando me vi na cozinha de casa, com meu lírico pratinho de florzinha, cheinho com três bananinhas amassadinhas e rompendo o lacre da lata de leite Ninho, senti que a criança em mim precisava de um colo. Nem que fosse o virtual.
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* Poema de Fagundes Varela, declamado aos 16 anos no teatrinho da escola.