O dia poético sempre é o dia que escolhemos para sê-lo.
Podem ser todos os dias? Não, não pode. Poesia é para ser sorvida e dias poéticos precisam de contemplação. Não dá para acordar na rotina e fazer de conta que o dia é poético.
Durante anos, quando eu era professora do ensino fundamental, elegi a quarta-feira com todo o seu azul para ser o meu dia poético. A matemática era simples: segunda, dia de horror à semana de trabalho puxado, preguiça com cara de tenho que labutar, eram 12 a 15 horas de trampo em sala de aula. Terça tinha cara de “ai, meu deus”.
Assim, Quarta era o dia P-E-R-F-E-I-T-O.
Simples, quando eu começava a trabalhar, já era sinal de que o dia ia acabar, não faltava mais um dia para o fim-de-semana. Quarta é véspera de quinta, dia de cine-mendigo, dia de sair à noite, dar um voleio imbecil no shopping. O segredo de quarta é que é véspera de quinta. E a gente sabe a humana idiossincrasia de comemorar a véspera. E o melhor, como quarta é véspera de quinta e quinta é véspera de sexta, estava tudo em pleno estado de comemoração. Já.
O segredo era simples: fazer da quarta, pilar da semana estressante, o dia de começos de risos com cara de folga… cara de fine settimana.
E por mais que eu trabalhasse quinta, este lance de saber que era quarta já me alegrava.
O tempo passou, entretanto, e elegi a quinta. Por causa do ex-amor. Ele amava a quinta, dia de vestir verde. A gente acabou assim amando junto a quinta-feira. E era dia de comidinha árabe feita por mim. Dia de chamar os amigos e fazer jantar em casa. Dia de tomar vinho até a Lua nos cansar na varanda e as poesias de Pessoa, Saramago, Drummond nos embriagarem de vez. Dia de discutir Nietzsche, de filosofar Platão, de descobrir Aristóteles. Dia de resenhar as leituras da semana na varanda gradeada (Ó como eu quis arrancá-las, as grades)… olhando por entre as frestas e acreditando no humano sonho de Ícaro… O vinho balizou os poemas, aguçou o olfato e o sexo entre macho e fêmea. E a Heineken alegrava as horas de tertúlias amorosas e amistícias somadas às gargalhadas de quem sabe ser feliz. Llosa, Neruda, Hugo, Veloso, Sousa Tavares… todos nos acompanharam… e rimos e rimos e rimos… brindando sempre à vida e a nós dois… que eu nunca esqueço o brinde.
Hoje, o tempo passou mais uma vez… O legado ficou e não mudei para a sexta. A sexta é comum, pertence a todos, banais, humanos normais que se arrastam pelos metrôs ou nas estações sem sequer saber que existe vida após o trabalho. E que dinheiro dá prazer, não dor de cabeça.
E porque hoje é quinta, eu chego mais tarde sim, em casa. Trabalho muito, sim. Corro de um lado para o outro… mas tenho prazer em pôr eu mesma o alho a cheirar no azeite, os tomates a cozer, a cebola a refogar e os pimentões milimetricamente cortados a despertar a acidez que me é tão doce. Depois, os mexilhões, a lula, o polvo, o kani, a lagosta e os camarões a dourar junto, banhados naquele pouco de viño bianco que aguça qualquer sabor. O molho de tomates rega o riso, arbóreo e frondoso na panela, enquanto o açafrão ou a páprica dão a pitada certa que o sal complementa. A atenção é redobrada no cozinhar do feitiço para ser feliz…
E sento à mesa, taça em riste, para brindar a doçura de viver bem… um brinde aos que assim me ensinaram e aos que poderão desfrutar destes momentos… Porque a vida só é possível reinventada, não é Cecília?