Este é um post pela blogagem coletiva (proposta pela Laura) sobre violência nas grandes cidades brasileiras. É um texto que eu preferiria não saber escrever. É um texto que hoje pode sair de mim e vir para o mundo, mas que ficou entalado por mais de um mês em minha garganta.
Nos jornais impressos, nas revistas, na internet e na televisão, vemos, diariamente, dezenas de notícias sobre violência. Isso nos assusta um, dois e três dias, mas passa a ser comum (atenção que eu escrevi comum e não normal) e a fazer parte do cotidiano, não despertando mais a nossa atenção. Apenas sabemos que a violência anda realmente alta quando ela bate à nossa porta ou à porta de alguém querido ou conhecido nosso.
No ano passado, uma van que levava minhas alunas para a faculdade, às 18h30, foi interditada e assaltadíssima. Roubaram relógios, telefones, dinheiro e cartões. Uma delas, a Rosa: responsável, senhora mãe de família, casada, trabalhadora. Faz faculdade no terceiro turno em busca de melhores condições, chega em casa quase à meia-noite. Paga com sacrifícios as suas contas. Madruga para dar conta de marido, almoço, filhos e de sair para o trabalho que começa cedo. Citar as referências de Rosa só aumenta a estupefacção que sinto, embora não considere que haja perfil de pessoas para serem assaltadas.
Uma amiga minha, incauta, gastou mais tempo do que deveria na porta de casa no bairro pacato onde nasci e cresci. Namorava o seu futuro esposo e dava o último beijo da noite. Os bandidos os renderam, tomaram o carro, levaram ambos no porta-malas, mantiveram-nos em cativeiro por um dia, até que o carregamento de drogas chegasse com sucesso à cidade do interior no carro roubado. Na hora de liberá-los, levaram-nos ao matagal, mandaram que andassem sem olhar para trás e corressem. Ela pensou que levaria um tiro pelas costas. Sobreviveu, graças à ‘bondade’ dos bandidos.
Conheço quatro rapazes, em igual condição de honestidade e dignidade (vale ressaltar), trabalhadores, que sofreram seqüestros relâmpagos. Abordaram o carro de cada um deles, sempre ladrões armados, rumaram ao caixa eletrônico, sacaram o dinheiro e levaram mais o que puderam de pertences. “Ladrões educados”, como se diz, porque, em três casos, devolveram os documentos às vítimas.
Chega!
Basta!
Pára tudo!
Brecht tem um poema que ecoa diariamente na minha cabeça e que recito em sala de aula para que nunca o esqueçamos, ao menos eu e os meus alunos:
” Vos pedimos com insistência
nunca digam é natural.
Pois em tempo de anarquia e sangue,
de humanidade desumanizada,
em que o arbitrário tem força de lei,
que nada se tome como imutável,
que diante de nada se diga ‘é natural’.”
Não consigo deixar de me indignar. Uma colega trabalha num colégio estadual no centro da capital baiana. Um aluno a ameaçou com uma arma caso ela não o aprovasse. Outra colega saiu da aula noturna para uma noite de terror: trabalha há 20 anos na escola que fica no Rio Vermelho, bairro boêmio em Salvador, cantado em verso e prosa, voz e violão. Ao ‘desacionar’ o alarme do carro, três homens a abordaram armados, empurraram-na no veículo. Depois de minutos de terrorismo verbal, vagando pela cidade sem lei, eles pararam em frente ao caixa eletrônico e a fizeram sacar o que podia. Queriam levar também os envelopes que ela carregava, explicou-lhes por a + b que eram provas da escola. Eles deixaram os pacotes, embora não sem antes conferir o conteúdo. O comentário dela foi: “graças a Deus que eles não levaram as provas. O que eu ia dizer aos alunos e à escola? E ao diretor?”
Sabe, é nestas horas que penso que alguma coisa séria precisa mudar. Muito séria mesmo. Não consigo aceitar que a pressão de um diretor ou de alunos possa ser maior que o ato de violência que ela sofreu. Dane-se a escola. Dane-se o diretor. Danem-se os alunos. Danem-se todos que não conseguirem entender que uma pessoa foi assaltada. Falamos em educação diversas vezes como solução para os problemas da humanidade. Não creio que seja utopia, acredito que possa mesmo transformar a sociedade em grande parte, mas não esqueço que tiranos são muito bem educados. E que a corja de governantes que pouco se importa com o povo também foi ‘bem educada’. O povo fica sem armas e sem argumentos.
É hora de ir às ruas, de ir às urnas, de ir às salas de aula, às palestras, aos shows de pagode, axé, sertaneja ou clássica, aos teatros, aos cinemas, às igrejas, aos centros espíritas, aos terreiros de candomblé, aos templos, aos estádios… é hora de parar em todos estes lugares para entender que não dá para viver com os índices de violência a que estamos submetidos. Alguma coisa precisa ser feita porque cada vez mais eu, você, nós e os eles que conhecemos são as vítimas de uma abismal desigualdade social, de um capitalismo que incita a ganância, a usura e os desejos de consumo daqueles que pouco se lixam para o bem estar global, porque protegidos por carros blindados e muitos seguranças e isolados no mundo à parte em que vivem as elites. Há, por outro lado, os que anseiam ter o mesmo mundo daqueles, mundo que lhes é negado. Se eu não posso comprar, eu tomo. Simples. Minha vida pouco vale, não há, muitas vezes, família, escola ou Estado que comigo se preocupe. Não trabalho, não tenho dignidade. Não sou cidadão.
Há pouco tempo eu li nos olhos de dois garotos de no máximo 22 anos que eles não tinham nada a perder.
Passei 30 anos fora das estatísticas negativas. Nunca ladrões conseguiram me roubar, embora houvesse várias tentativas. Mas, há menos de dois meses, parei às 10h30 no calçadão da praia para fazer umas fotos. O mar estava com uma cor incrível, o céu de um azul lindo. Ia blogar a foto e escrever um poema. Estacionei, desci do carro só com a câmera. Usava um óculos, uma saia longa e sandálias baixas. Olhei ao redor, a câmera era discretíssima, pequenina. A praia estava cheia, muitos homens fortes, malhados, sarados. Pais e mães e filhos, gente de bem. Tirei uma, duas, três, quatro fotos. Então percebi os vultos correndo em minha direção, dei um giro, olhei ao redor, vi muitas pessoas… Agarrei a câmera, um deles a pegou enquanto o outro me puxava pelo braço. Puxei, gritei, gritei, gritei, gritei. NÃO! NÃO! NÃO! Ele gritava: a digital! A digital! A digital! Os transeuntes passavam, os carros passavam. Os ônibus estavam no ponto próximo.
O menor deles, me olhou, cerrou a mão. Percebi o que ia fazer, desviei o rosto e então pude aliviar o impacto do murro que tomei no maxilar pelo lado esquerdo. Agarrei o outro que me puxava o braço com violência, não sei com que força que achei na hora. Torci o braço dele e o derrubei. O outro puxava a câmera e eu a corda de nylon trançado que me feriu o dedo porque se partiu em mim. Empurrei-o e ele caiu, a câmera foi jogada no chão. Eu ia pisar no cara, bater nele, imobilizá-lo… e foi aí que vi, em seus olhos, que ele não tinha nada a perder. Num átimo de segundo, lembrei minha mãe, lembrei que havia a possibilidade do bandido estar armado e, se fôra capaz de me esmurrar e ferir, eu, uma mulher, seria capaz também de atirar, de matar…
Cerca de seis homens malhadíssimos se aproximaram nesta hora, ao ver ambos no chão, tudo muito rápido, segundos… e minha cabeça veloz, no sentido contrário do slow motion da cena… olhei o meu dedo ferido, sangrando… e brilhou um anel de minha mãe nele. Foi o suficiente para que eu me lembrasse do mantra que recito desde que ela morreu: vão-se os dedos, ficam os anéis. E me lembrei de que eu tinha o que perder, a minha vida. E ela é cara para mim. Soltei o garoto, segura de que os homens que chegaram o segurariam e imobilizariam o outro. Qual o quê! Ninguém fez nada. Nada.
Foi o tempo dos bandidos perceberem, catarem a máquina no chão, com a objetiva ainda aberta e atravessarem seis pistas em menos de 10 segundos, desaparecendo na Boca do Rio. Olhei os homens que se acercaram, chamei-os de covardes e desapareci no carro, atrás ainda dos bandidos ou de uma polícia que fosse. Não encontrei nem uns nem outra.
Fiz o retorno e fui comer o caranguejo que me haviam proposto. Beber um pouco para celebrar a vida que é sempre o brinde que eu faço. Afinal, os dedos ficaram. Não acho certo lutar contra bandidos, não aconselho ninguém. Mas não pensei ao reagir, não sabia que assim faria. Sempre me considerei mulherzinha, frágil.
Dei queixa, chances 0,000000001% de encontrarem minha câmera. Prejuízo de uma trabalhadora que paga impostos, declara IR, madruga às 5 ou 6, dorme sempre mais de meia-noite, trabalhando. Foram quase oito salários de prejuízo material, houve um dano psicológico irreversível que me faz ter mais medo de andar na rua e até de ficar em casa e houve mais os danos físicos: o braço roxo, o dedo ferido e o maxilar latejando por duas semanas. Revoltante. Se eles, os bandidos, são vítimas, não posso me esquecer do quanto eu, você e nós somos também.
É por isso que convoco os leitores e os blogueiros a uma reflexão coletiva, hoje, dia da blogagem contra a violência nas grandes cidades. Está na hora de entendermos que somos nós os atores de nossa própria história. E falar em atores significa falar em sujeitos e não em objetos passivos. Esta vida aqui é a nossa vida. Esta cidade é a minha, assim como você tem a sua. Nós estamos aqui. Nós permitimos o mundo assim. Não sou idealista ao ponto de acreditar que vamos mudar o mundo inteiro e sei que violência existe desde que o homem é homem.
Mas há alternativas. Há formas de diminuir a violência nas grandes cidades. Educação é uma delas. Políticas sociais são necessárias. Chega de assistencialismo que só gera mendicância. Por isso, eu vou estudar a oferta de candidatos para outubro. Meu voto vale a minha vida. A máquina se foi. Meus dedos, entretanto, ficaram. Logo, tenho certeza de que poderei melhor ainda apertar o botão digital em outubro.
E o título do post?
Pão e circo: a política pública atual e já velha conhecida. Seitas e religiões alienadoras, pagodes e axés só para cantar as bundinhas e vagabundices que sobem e descem ou os sertanejos para desfilar o rosário de cornos que levaram das mulheres amadas por esta ou aquela dupla. Escolas de produzir rebanhos, televisão de entretenimento tosco. Celebridades, intrigas e fofocas… Ti-ti-tis inférteis. Enquanto todo mundo só quer saber com quem você, Adrianes, Marílias, Déboras, Glaucos e Lurdinhas se deitam, sinto muito, nada pode mesmo prosperar.