Entre as vidas secas no sertão baiano, lá na terra castigada pelo sol entre As Almas e Serra Preta, a oito léguas de Ipirá, nasceu há “75 anos e 10 meses”, como faz questão de frisar, Dona Leandra Maria de Santana.
Dona Leandra vende artesanato na feira em São Francisco do Conde, está cadastrada pela secretaria como artesã e seu nome aparece no site da cidade. A primeira feira de artesanato foi realizada com seu trabalho. Passou seis meses na Assistência Social ensinando às crianças a trabalharem com palha. Orgulha-se de ser ‘professora’, título de prestígio, e exibe o certificado do censo da prefeitura na parede de sua casa.
Como eu a conheci? Passava de carro pela rua do Drena, rua simples, sem asfalto, e deparei-me com uma casinha em cujas grades estavam à mostra bolsas e chapéus de palha. Lá de dentro, da varandinha, uma senhora sorridente me convidou a ver a sua arte ganha-pão. Desci do carro e passei uma hora agradável de prosa, vendo o trançado que suas mãos hábeis não paravam de fazer. E ouvi a sua história.
“Era uma adêvogada se tivesse, valei-me, botado para estudar!” “Pai e mãe” não a colocaram na escola. Ela passou só 20 dias na sala de aula, já adulta, e não aprendeu a ler. Então saiu. Aprendeu a assinar o nome e só. As mãos, que não passaram pelas linhas do papel e nem seguraram o lápis na infância, trançam a palha da Bahia e tecem honesta-mente o sustento de uma família. Desde criança, com 5 anos apenas, aprendeu a tecer corda de cabresto e peia com coroá ou linho. “Naquele tempo, o trabalho era normal, não havia isso de criança explorada, não. Todo mundo trabalhava com o pai e a mãe” no Brasil sertanejo de 1935. E dona Leandra aprendeu a fazer de tudo: esteira, bolsa, chapéu, tapete, brinquedo de criança, vassoura… Ao ver uns chapeuzinhos de palha, miniatura, sua “genra” diz que Maurício (o gato) adorou… Ao que dona Leandra retruca: “Oxi, i eu lá trabaio pra gato?” “Ah, não repare, não, moça, aqui em São Francisco, a gente não chama nora. É genro e genra.”
Eu pergunto de onde vem a palha e ela ri, com assombro, da minha pergunta:
“-Tem que í no mato pegá. Oxi, i tem paia dentro de casa?”
Dona Fia, como é conhecida “daqui até os limites de Feira de Santana, todo o povo me conhece, sou reconhecida. É um prazer, Deus e o mundo todo me abraça”, Dona Fia ri largo, gargalha bonito e convida-me para o almoço, que dispenso educadamente. Então ela ri e se diz uma “velha ousada”, querendo chamar a moça para almoçar, “tomando intimidade”. “Conheci agora, veio de Salvador e já parece que saiu foi de dentro de mim”.
Suas mãos não se aquietam um segundo e noto a dupla aliança. Ela se casou duas vezes e enviuvou dos dois.
Primeiro, casou-se só no civil, lá em Santo Estevão, porque o padre se recusou a fazer a cerimônia religiosa. O sobrenome de solteira Leandra Pereira dos Santos, sertaneja, era igual ao do marido, natural de Cachoeira, no Recôncavo baiano, Manoel Pereira dos Santos. O padre então se negou a casar os dois “irmãos”. No cartório, o oficial resolveu a questão: tirou o Pereira, botou o Maria.
Seu ventre gerou 11 vezes. Perdeu três e uma filha morreu aos dois anos. Hoje são sete descendentes e o mais velho já tem 50 anos (vive de vender caranguejo). O marido acabou “matado de carro”, mas dona Fia não acusa o motorista. “Manoel estava em cima do capô e caiu na estrada, em seguida, foi atropelado pelo outro carro”. A brincadeira lhe custou caro e deu a dona Fia trabalho enorme para criar sozinha os filhos. Só 90 dias Manoel estava na firma, não lhe deram o direito à pensão e o sustento se fazia por meio de biscates. Leandra lavou roupa de ganho até “sentir o gosto de sangue na boca”. E então “Deus lhe mandou” outro Manoel.
Ela não queria, mas ele veio de lá da fazenda e bateu em sua porta:
“- Dona Leandra, eu posso sustentar a senhora. Trabalho na fazenda e ajudo a criar seus filhos.”
Foi assim que passou a se chamar Leandra Maria de Santana. Conta encantada: “Sou feia, não é boniteza. Deus viu que eu precisei e me mandou outro marido”.
Não faz exames, porque o médico só atende no posto dia de terça. Foi duas terças e nunca teve vaga. Aí desistiu de voltar… Pediu “ao Espírito Santo e ele me disse na hora: ‘vá , doença, embora”. Dona Fia me mostra o pé com uma cicatriz: feriu-se, cortou ela própria “os nervos”, limpou com água oxigenada e passou a pomada que a doutora mandou. “Fiz tudo sozinha”, conta orgulhosa. E sarou. Mas isso a impediu de andar longas distâncias. Paga para trazerem do mato a sua palha de licuri.
A essa altura da prosa, dona Fia me pergunta então se eu quero ver que ela sabe ler sem saber. Fico embaraçada, sem entender direito. E a sua “genra” vai lá dentro pegar a bíblia. De cabeça para baixo, ela a folheia um tempo até perceber o engano. Ri e não perde a compostura. Abre em um salmo e o lê… Conta-me então, em segredo, que basta ela ouvir uma vez com atenção, que ela aprende “a ler”. Vejo seu livro único, então, cheio de marcadores de páginas. Com certeza, as páginas que ela sabe ler. E assim ensina na Igreja Deus é Amor. É missionária em São Francisco do Conde, evangeliza com a palavra. seu grande caráter não conhece a manipulação, crê no Bem e no Amor. E é isso que ensina a quem quer ouvir. E no trabalho, que este foi quem a ajudou a viver honestamente “esta vida de meu Deus”.
Pergunto-lhe o preço da bolsa e ela insiste em me dar de presente. Na próxima, eu aceito, dona Leandra. Mas hoje vou lhe pagar. Gastei 8 reais e trouxe para casa duas bolsas lindas bem trançadas. Isso é Brasil. Este é o povo e esta é a cultura de que eu gosto tanto.
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Alena Cairo , 27/10/2006