“Não sinto o meu corpo, não quero senti-lo por enquanto. Só permito a mim existir, hoje, enquanto consistência de palavras. Estas combinam-se em certas frases que expressam pensamentos meus oriundos da memória afetiva e criados pelo acaso.
(…)
Paro de combinar frases.
Estou prenhe de frases como nunca estive. Todo o meu cérebro está funcionando como um imenso útero que fabrica, sem que tenha consciência, frases e mais frases. Quero acreditar que posso escrever como nunca escrevi. Sei que não posso. A produção das frases está aqui, na cabeça, e difícil é passá-las para o papel. O problema não está tanto na dificuldade em transcrevê-las. Basta fechar os olhos e entegrar-se ao automatismo surrealista da escrita. Encontrar uma razão para a necessidade de deixá-las existir no papel e no livro: eis a questão. Fora de mim e para o outro. Para isso sempre foi preciso “fazer ficção” das minhas palavras. Ou não.
(…)
O único motivo – pelo menos o mais forte – que vejo no momento para poder deitar as minhas frases no papel é que quero não sentir o meu corpo. Quero que todo o meu eu seja- agora e hoje – apenas um emaranhado pesado, denso e consistente de frases. Elas camuflam um corpo dolorido que não quer pensar nas dores sofridas que castigam os sentidos e a memória. Escrevo para não deixar que o meu corpo doente e massacrado exista, prossiga, influa, direcione, convença-me finalmente da sua importância e da sua riqueza para mim.”
Silviano Santiago (baseado em apontamentos de Graciliano Ramos ao sair da prisão em 1937)