Carnaval em Salvador

Não dá para deixar de falar do Carnaval de Salvador. Até tentei, não queria o assunto, mas aí está.

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A festa 

Imaginar o carnaval de Salvador é completamente impossível para quem não conhece a realidade do carnaval baiano. Só quem já passou um ano aqui pode ter a dimensão do que é a festa.

Nos corredores da cidade, três, quatro pistas ficam pequenas para o trio, a corda e a multidão dentro e fora do bloco.  As avenidas foram todas loteadas e os camarotes de vários andares dominam os circuitos da Barra a Ondina e do Campo Grande. O apartheid é óbvio: as castas mais ricas têm local privilegiado em camarotes vip’s disputadíssimos nos quais tudo é free. Em cima do trio, os artistas conduzem o circo enquanto aqueles que não têm pão se espremem do lado de fora das cordas ou segurando-as para dar segurança aos que ainda têm condições de pagar um bloco (de 500 a 2500 reais por três dias – há os mais baratos e um ou outro que até extrapola).

A pipoca 

A graça do folião comum, aquele que vai à pipoca curtir (fora das cordas, livre, nas ruas, no meio do povo) quase acabou. Aficcionado pelo Chiclete, por Ivete ou pelo Asa que “arrêa”, arrisca a diversão popular, a ‘pseudo maior festa grátis do planeta’. Dizer que se acotovelam é mentira das maiores: é praticamente impossível subir ou mexer os braços na multidão. O vai para lá e para cá na maior parte do tempo envolve um empurra-empurra  do qual ninguém escapa. Suores, banhos de cerveja, agarra-agarra e respingos da imensa quantidade de urina que alaga o “chão da praça” são inevitáveis. Pense em jogar seu tênis fora depois do primeiro dia (eu sempre adquiro um baratinho só para abandoná-lo tão logo acabe o carnaval).

Os camarotes

Nos camarotes, ar-condicionado, borrifos de água pulverizada para diminuir o calor e aumentar a umidade do ar, música para os intervalos entre os blocos, piso até com grama sintética, rede conectada ao mundo todo, bares e restaurantes, infra-estrutura de fazer inveja.  Parece mais uma praça de alimentação de um grande shopping dos melhores centros urbanos.

O homem é um animal

O problema ocorre na hora em que as necessidades fisiológicas nos lembram a condição humana animal. Nos megacamarotes repletos de loiras escovadas de salto alto (acreditem!), mesmo naqueles que se erguem na frente dos hotéis da orla, a fila do banheiro feminino chegava a ter 40 mulheres à espera do reservado (geralmente sujo, respingado e alagado). Nas ruas, caminhe cerca de 20 a 30 minutos sem pôr os pés no chão algumas vezes, levada pela massa que se desloca, encontre na rua detrás do circuito (por exemplo, a Sabino Silva) cerca de 20 sanitários químicos, insuficientes, óbvio, e fique numa fila absurda à espera de manter um pouco a sua dignidade social.  Muitos não agüentam e, infelizmente, você vai se deparar com homens com o pênis de fora por todo o caminho a ‘mijar’ nas ruas e mulheres agachadas ao lado de qualquer carro ou atrás de qualquer poste. Há também homens e mulheres defecando nas vias transversais ao circuito oficial. 

Fazer uma festa para mais de 2.000.000 de pessoas  é quase um suicídio municipal. Havia sanitários em vários lugares ao longo do percurso, sim, mas imagine a quantidade que serviria para atender a este número de pessoas.  E eu não estou falando em conforto porque se alguém conhece um sanitário químico na Bahia, conforto é tudo em que não se pode pensar jamais. A cena da Sabino Silva me fez lembrar Ensaio sobre a cegueira de Saramago.

Providências urgem

Ou a organização do carnaval da Bahia entende que o espaço deve ser algo como a av. Paralela, mesmo que percamos o glamour da avenida Sete e da Praça Castro Alves ou do Farol da Barra, ou a festa terá que acabar. Há seis anos era tudo muito diferente, há dois anos ainda era possível brincar melhor. Rua hoje é difícil, honestamente.

Fazer muitos circuitos alternativos é um caminho também, mas é preciso deslocar o Chiclete com Banana para estes lugares porque o povo não abre mão de vê-lo. O percurso  Barra-Ondina surgiu como uma alternativa para descongestionar a avenida, mas estão ambos absurdamente superlotados.

A violência

Quando vejo os números da violência, respiro aliviada. As mortes são poucas se considerarmos a multidão.  A quantidade de pessoas aglomeradas poderia gerar uma catástrofe que a festa da alegria não permite, graças.

Assaltado, entretanto,  é certo que você será. Mesmo que não leve nada. Na multidão, enfiam a mão em seu bolso, afanam sua corrente e partem suas pulseiras. Ainda que não leve nada de valor e nas orelhas carregue uma bijuteria barata, seus bolsos serão revistados e é por isso que nós, baianos, distribuímos o dinheiro pelas meias, lateral da calcinha e  bolsos diferentes. Na minha bermuda, eu carregava no bolso traseiro a carteira do plano de saúde no primeiro dia: voltei sem ela para casa. Deve ter passado uns dias no chão da avenida à espera dos lixeiros desde o instante em que o bandido folião percebeu que não era de valor já que pessoal e intransferível.

A música

Sim, apesar de tudo, é contagiante o ritmo, é fantástico o povo junto pulando, é maravilhosa a sensação de alegria, brincadeira e curtição da vida. A vontade que dá é a de que o carnaval não acabe nunca. Por isso mesmo, precisa mudar a atual estrutura.

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