Rasgar o passado não é fácil, mas é preciso.
Há quem creia impossível. Eu creio nas mudanças que vêm com o tempo. E no prazo de validade que todas as coisas têm. Inclusive nós, seres humanos perecíveis.
Inquietações de saber-me pesada com tantas recordações: âncoras a me prender na projeção futura e necessária. Cortar os grilhões, rasgar os papéis rabiscados de tintas. Em minhas mãos lavadas a todo instante, poeiras que carregam o sangue de um passado tão vivido.
Sentei no chão de meu quarto, abri a pasta rosa, passei os olhos neste e naquele bilhete, cartão ou carta quilométrica ou expressa. É hoje apenas papel e rasguei-os todos sem dó nem piedade, mas sentindo um peito afobado e um passado que de mim talvez teimasse não sair. Quisera eu a metáfora perfeita de um escravo alforriado que ainda não sabe se teme mais o que passou ou o que virá. O que já foi não é mais. E nem eu queria que assim fosse.
Por outro lado, parece que me ver diante da que eu era há tempo me conduz ao conflito óbvio. Cartas e mais cartas e mais cartas de amor rasgadas, palavras que hoje perderam a coesão com suas companheiras de linha, rasgadas que foram. Agora, estão compatíveis com as emoções que há muito perderam o sentido, a lógica, a razão.
Fotos ainda registram o que não existe mais e nem o amarelar do tempo talvez apague tudo. Não. Não apagará. Mas há de esmaecer. Assim é. Assim será. É preciso mais tempo. Mais disposição para não se saber a si mesma, para deletar-se de si, desconstruir o que é memória apenas e apenas isso deve ser. Recordações.