Uma das sensações que tenho quando revejo as fotos de viagem à Grécia é de estupefacção. Fico parva pensando em como é mesmo que eu fui parar em Atenas.
Tudo começou, na verdade, na minha infância. Minha mãe me dava livros de presente e eu lhe pedia todos, enchendo a paciência dela como Drummond a de seu pai quando lhe pedia a Biblioteca Verde de percalina. Eu tinha o plano secreto de ler todos os livros do mundo. Naquele tempo, eu não sabia quantos eram todos-os-livros-do-mundo.
Os vendedores de livros viviam de porta em porta a vender suas obras de capa dura e recheadas de histórias das mais maravilhosas. Para uma menina que vivia na cidade grande e cuja mãe não permitia brincar na rua nem com vizinhos, criada em redoma e protegida, a descoberta dos livros foi algo assim estupefaciente. Eu amava ler. E me lembro de sair correndo pela casa com um livro recém lido, gritando toda feliz: LER É A MELHOR COISA DO MUNDO !
Por isso, por ser professora e porque eu realmente não dava trabalho deitadinha lendo sem parar, minha mãe fazia sacrifícios homéricos e comprava em não sei quantas vezes todas as coleções que os livreiros iam vender lá em casa. Lembro-me bem do dia em que o estranho chegou com a caixa cor de papelão, pesadíssima com quatro grandes volumes de capa preta. Distraí-me com os volumes infantis, mas já tinha as três outras coleções. Até que bati o olho nas letras douradas que anunciavam SÍTIO DO PICAPAU AMARELO. Compra, compra, compra! Mas mainha tomou um susto com o exorbitante preço anunciado e deu aquele suspiro sobressaltado que lhe era tão peculiar. Insisti, argumentei, convenci. Não me recordo o que lhe falei, mas sei que eu tinha oito anos. Com a gravidade que cabe a uma criança, olhos arregalados de medo do que minha me acusava de conduzi-la a fazer, gastar muiiito mais do que podia, quase me arrependi de tanto insistir pelas 1916 páginas. Ela pagou em cheques, ralhou grave comigo: Tome, pronto! E agora faça o favor de não me pedir mais nada! E saiu disparada da sala como que para não voltar atrás e tomar os cheques da mão do homem.
Fiquei culpada, mas carreguei o pesadíssimo primeiro volume para o quarto, com medo da responsabilidade de fazer minha mãe ser presa por gastar aquela fortuna e não poder pagá-la. Meu pai ralhou com ela. Ela se justificou: mas a menina gosta de ler… Fiquei com medo dele brigar com ela. E logo minha cabecinha inventiva imaginou o homem dos livros como um sujeito mau a partir de então, um sujeito capaz de levar as mães à cadeia ou à dissolução do casamento. E desejei nunca mais vê-lo na vida.
No final do mesmo dia, recordo-me de ter sentado na sala da frente da casa e de ter lhe contado maravilhada as reinações de Narizinho, de lhe ter agradecido com uma seriedade muito grande e de lhe prometer que nunca mais lhe pediria livro nenhum. Eu ia ler aqueles livros até a eternidade de ficar grande e poder comprar meus próprios livros.
Assim germinou meu primeiro pensamento anárquico-comunista-democrático(risos): por que os livros não eram de todas as pessoas e não se podia pegá-los quando bem se entendesse sem que a sua mãe precisasse ir para a cadeia por isso? Era só o que eu pensava.
Foi assim que eu comecei a ler Lobato, foi assim que eu esqueci que havia rua lá fora e mergulhei na Grécia Antiga, no País das Fábulas, no Reino das Águas Claras e em tantos outros lugares mais com o pó de pirlimpimpim.
Então, quando eu cheguei ao quarto volume, já com 11 anos de idade (época em que concluí toda a leitura do Sítio), eu me sentei séria ao lado de minha mãe no sofá, com o livro tão pesado no colo e lhe disse: -Mãe, um dia eu ainda irei à Grécia. Ao que ela respondeu com as certezas que só as mães sabem passar aos filhos: – Vai sim, minha filha, vai sim.
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Em 2005, a bordo do MSC Armonia, às 5 da matina, pude subir sozinha ao alto do navio e ver uma fina garoa a encobrir Atenas. Eu chegava ao porto de Pireus e não sabia bem se ria, se chorava, se acreditava ou duvidava, beslicava-me ou esbofeteava-me para crer que era verdade. Pireus era como eu imaginava e já fazia quase seis anos que minha mãe falecera. Então, vendo os raios de sol a iluminar a Grécia que amanhecia, eu ri e chorei:
– Mainha, eu não te disse que eu vinha?
Fui ao Olimpo, bebi néctar e comi ambrosia.
emocionante.
o enredo consegue ir a fundo e tocar na nossa alma.
bem escrito, bem dito.
bjs e bom fds.
E a Mainha ficou embevecida de alegria por te ver lá em cima tu no Olimpo.
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Obrigada, Fontez. Senti sua falta por aqui, mas eu também estava relapsa. Na verdade, sobre o texto, escrevi-o com emoção real. Saiu de dentro, sabe?
Li teu blog todinho hoje(hipérbole). Volto para comentar.Aguarde.
Beijos
Alena
Alena,
relato comovente, do início ao fim.
É sempre bom ler-ver-sentir-descobrir almas ligadas aos livros, desde sempre. E a presença-lembrança de sua mãe, pairando sobre todo o texto, enriquece-o de maneira especial.
Parabéns!
Vivina.
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Que honra, Vivina! Você por aqui! Estou de novo no Olimpo…
Obrigada de novo.
🙂
Está vendo, Alena!
Ao que a Vivina disse, só acrescento que esse é o estado e disposição dos grandes espíritos: a estupefacção, como, aliás você sabe: Platão diz que a Filosofia, ou mesmo a filosofia, começa pelo espanto. E Aristóteles fala do Thaumatzéin.
Eu creio que quem perde a capacidade de se espantar , de ficar estupefacta… ah!
E não é à toa que minha palvra fave , você sabe: é flabbergasted!
É o amor mais rico que se pode ter; pelos livros e claro, pela palavra.
Um beijo e obrigada pela emoção.
Meg
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E o de mãe, Meguita, que é um amparo que consola a existência. Estou que não caibo em mim: só gente importante hoje aqui (risos).
Nossa como escreves!Gostei.Ainda hoje apaguei meu blog daqui do wordpress,pq nao entendo nada de web.Mas estou no http://www.quemteclanaochora.blogspot.com.
Encontri-te no sindromedeestocolmo.
Parabéns!
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Vitoria, eu não consegui acessar o link. O que não entedndeu do wordpress? Talvez eu possa ajudá-la…
Um beijo e que bom que veio por estas paragens…
🙂
Alena,
Tem uma er.. bem, uma espécie de lembrança-presente para você.
Lá no (nosso) Estupefacto;-)
ali em cima , eu quis escrever “amor”
beijos
M
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Meguita, nem se preocupe! É o tipo erro óbvio, até Machado os cometeu (risos). Dá para entender… Beijinhos
Porque você leu muito é que escreve tão bem…E estou exultante de você usar meu texto na sala de aula. Que máximo ! Que seja bem legal, com os alunos e com os jogadores.
Obrigadíssima.
Beijos
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Depois te conto como foi, Fefê. Nesta semana, selecionei alguns escritos de amigos blogueiros. Os alunos adoram… também, com tanta gente boa escrevendo na net…
Mil beijos.
😀
Eu disse o mesmo pra minha mãe, e fui…Eu amo a Grécia!! Lembranças boas…
Alena, lindo texto! as catarses são necessárias 🙂 bjao soll
Descobri o prazer pela leitura um pouco tarde, mas desde então sou sempre fiel.
alena, estava a escrever um comentario, e o seu blog fugiu-me…mas sou persistente!
só quero dizer que sei o que sentiu com a ida a grecia. lá é tudo tão bonito,tão simples e elegante, que parece que foi fácil construirem toda aquela beleza.em qualquer recanto se sente o peso da historia. foi para mim uma alegria poder ter levado os meus 4 filhos, juntos, a visitar a grecia.penso que essas ferias fazem parte da herança que lhes vou deixar. Na Grecia, como em Roma, senti, quase – quase, o que é o sindrome de stendhal.
continue a viajar e a contar-nos as suas historias
um abraço
mãenuela
Menina você já tem livros publicados?
Desculpe o tom íntimo se nem nos conhecemos, mas seu relato é feito de tal forma que a gente sorve suas palvras degustando as frases. Que maravilha, o relato e a forma de relatar.
Se ainda não escreveu, escreva. Se já escreve me mande informações para comprar seus livros.
Um abraço carinhoso,
Graça