Dia 27 de setembro é dia de caruru na Bahia.
Cheguei à cozinha e minha empregada estava a rir solta… Indaguei-lhe qual era a graça e ela disse que fôra a conversa que ouvira no ônibus a caminho. Uma mulher assombrada conversava com a amiga sobre o medo que tinha do candomblé e ‘destas coisas malignas’. Dizia que a sua avó soubera pelos tios que, no candomblé, quando morre uma mãe de santo e fazem uma festa depois, a saia sai dançando sozinha. Sorri também. Lembrou-me dos livros de Jorge Amado.
Eu sou uma pessoa apaixonada por tradições, rituais e crendices, ainda que eu não creia em (quase) todas, burle rituais e subverta tradições. Na Bahia, hoje é dia de caruru. O sincretismo se encarregou de misturar a comida dos negros, as oferendas, aos rituais cristãos europeus. Por isso, hoje no meu estado só se fala em caruru.
Nas feiras, os preços dos camarões estão lá no alto, há cestos de quiabos espalhados por todos os mercadinhos e grandes supermercados e, logo mais, à noite, nas Sete Portas e na Feira de São Joaquim, haverá gigantescos carurus de não sei quantos mil quiabos para agradecer aos meninos as benesses que nos ofertam. As baianas também estarão em todas as esquinas hoje não só para vender seus quitutes, mas para oferecer um caruru gostoso à população em agradecimento às vendas do ano inteiro.
São Cosme e São Damião são invocados por católicos no mundo todo. Reza a lenda difundida desde o século V d.C. que as crianças gêmeas curavam enfermidades de pessoas e animais. São patronos dos médicos e farmacêuticos e também das crianças. Família baiana que se preza oferece um caruru anual aos gêmeos: se os têm também dentro de casa, então caruru é lei.
No tempo em que minha mãe era viva, ela oferecia a Cosme e Damião mais de um caruru por ano. Sempre havia no mínimo uns três: abril, julho e outubro. É que eles também são os padroeiros das doceiras e minha mãe, além de professora, era quituteira das melhores. Foi por isso que eu cresci vendo os santinhos na cabeceira do criado-mudo dela, em cima do mármore bege-bahia com os pratinhos de caruru, vatapá
feijão fradinho, arroz, xinxim de galinha, farofa de dendê e umas balinhas ou rapadura. E duas velinhas acesas, lógico. Sempre havia 7, 14 ou 21 crianças convidadas a comer. E quem vive na Bahia sabe: nem precisa conhecer estas crianças todas. Se o caruru é bem sucedido, se os gêmeos abençoaram, as crianças aparecem sempre.
Ironicamente, a oração a São Cosme e São Damião tem um trechinho assim:
“(…) medicai o meu corpo na doença e fortalecei a minha alma
contra a superstição e todas as práticas do mal (…)”
Sorrio porque na Bahia a oração não funcionou: a superstição faz parte do próprio culto aos meninos. Os ibejis, gêmeos amigos das crianças, são festejados no candomblé dia 27 de setembro e, por isso, a festa aqui ocorre um dia depois do calendário oficial dos santos. Os ibejis são crianças traquinas que podem desorganizar a vida de alguém, atrapalhar os caminhos, mas atendem sempre aos pedidos dos devotos que lhes oferecem doces e guloseimas. Por isso a tradição de dar o caruru com doces e de oferecê-lo sempre primeiro às crianças.
Há quem duvide da existência de Cosme e Damião e atribua o culto cristão ao sincretismo com uma antiga lenda grega: os filhos gêmeos de Zeus, Castor e Pólux.
Não importam as verdades, lendas e superstições agora. Porque eu estou a me preparar para seguir a tradição familiar que mantenho: dar o caruru de São Cosme e São Damião. Já arrumei o altar, acendi as velas e coloquei os santinhos. É só pedir saúde, fertilidade e deixar vir a mim as criancinhas.
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Esta imagem que abre o post lá em cima é dos santinhos de minha mãe.