Uma flor para minha professora

“- Menina, onde é que você vai com essa flor?

Ela era limpinha e trazia na mão o livro e o caderno encapados. Usava duas trancinhas.

– Levo para minha professora.

– Por quê?

– Porque ela gosta. E toda aluna aplicada leva uma flor para a professora.

– Menino também pode levar?

– Gostando da professora pode.

– Ah! é?

– É.

Ninguém tinha levado uma flor sequer para minha professora D. Cecília Paim. Devia ser porque ela era feia. Se ela não tivesse uma pintinha no olho, não era tão feia. Mas era a única que dava um tostão pra mim para comprar sonho recheado no doceiro de vez em quando, quando chegava o recreio.

Comecei a reparar nas outras aulas e todos os copos sobre a mesa tinham flores. Só o copo da minha continuava vazio.

(…)

Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um cavalheiro. (…) E todos os dias fui tomando gosto pelas aulas e me aplicando cada vez mais. Nunca viera uma queixa contra mim de lá.

(…)

A escola. A flor. A flor. A escola…

Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.

Quando terminou a aula, me chamou.

– Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.

Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.

– Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?

Balancei a cabeça, afirmativamente.

– Da flor? É, sim senhora.

– Como é que você faz?

– Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.

– Sim, mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.

– Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também…

Ela ficou espantada com a minha lógica.

– Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro… E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.

Ela engoliu em seco.

– De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?

– Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some…

– Eu não podia aceitar todos os dias…

– Por quê?

– Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.

Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.

– A senhora não vê a Corujinha?

– Quem é a Corujinha?

– Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão.

– Sei. A Dorotília.

– É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá com ela.

Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.

– A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.

As lágrimas estavam descendo.

– Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.

– Não é isso, Zezé. Venha cá.

Pegou as minhas mãos entre as dela.

– Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.

– Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.

– Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?

– Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?

– Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu esta flor foi o meu melhor aluno. Está bem?

Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura:

– Agora pode ir, coração de ouro …

(…)”

in “O Meu Pé de Laranja Lima” de José Mauro de Vasconcelos

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9 comentários sobre “Uma flor para minha professora

  1. Suspiro …
    Olhando para trás nunca me lembro de ter lido um livro de José Mauro de Vasconcelos sem uma lágrima no olho. Mas o meu preferido era a Rosinha, minha canoa. É tão linda a comunhão entre humanos e natureza nos livros dele. Como se o mundo natural trouxesse à superfície o que os humanos têm de mais lindo.
    Obrigada por esta flor, Alena 🙂

    _____________________________________________________

    Quando eu me formei, descobri estarrecida que a professora que eu mais admirara na faculdade considerava este livro demodê. Nossa! E sensibilidade é demodê? Não vou dizer que depois de adulta é o meu livro preferido, mas quando eu era menina, Zezé me ensinou a sensibilidade de forma muito bonita. Quando eu era criança, este era se dúvida o meu livro preferido. Li e reli muitas e muitas vezes. E sempre chorava e acahava bacana chorar. Aquele Portuga habitava um mundo de pureza que vale a pena. Ziraldo fez algo parecido com o Menino Maluquinho. Às vezes, eu tenho a impressão de que o menino de Ziraldo era o mesmo Zezé – uma criança traquina, normal e com chances de ser feliz e ter história para contar.
    Quanto à dona Cecília Paim, juro que ontem eu me lembrei dela quando vi o descaso com que os professores são hoje tratados por tantas pessoas. Tantas.

  2. Esse livro pra mim é especial…
    Foi ele que, ainda no primário, me fez despertar para o amor pela leitura… Lindo! Não tem quem não se emocione…
    Nem me lembrava mais dessa passagem, mas assim que comecei a ler, reconheci logo o “meu primeiro livro” 😀
    Bommm D+!
    Bjsss Alena (Ps: Ainda bem que lá na Jorge não tem copo em cima da mesa, pq meu vizinho não tem flor no jardim! Rsrsrsr)

    ____________________________________________________

    Pois foi esta passagem que eu recordei ontem, Isis, no dia do professor. Tanta gente a ignorar a existência nossa. Tanto professor mal cuidado pelos seus alunos… Pensei piegas então: vai ver que são todos dona Cecília Paim.

    Aproveitando sua gracinha, nem se preocupe, porque lá está minha flor imaginária. 😀

  3. Alena…
    Sempre entro na sua página para ler seus posts.. e sempre tem algo interessante…

    E para aproveitar essa data (que na verdade já passou, mas pouco importam as datas) eu gostaria de falar o quanto te admiro.
    Aliás acho que o que sinto vai além da admiração.

    Nunca fui fã de nada nem ninguém durante minha infância ou adolescência, mas acho que pela primeira vez encontrei em você um ídolo.

    Pela simplicidade que explica e fala da vida, pela vastidão do seu saber… (ah… e quanta coisa eu gostaria de aprender ainda com você… uma pena que durou apenas um semestre. E é por isso que visito sempre sua página e leio quase todos os seus posts, para aprender um pouco mais sobre o que é viver de verdade).

    Eu e Bruno te admiramos demais, porque você nos apresentou um novo mundo… que vai além das paredes da faculdade e dos dias da semana.

    Parabéns, porque você vai muito além de uma professora, e quem se deixa levar pelas suas histórias, com certeza consegue mergulhar fundo na VIDA DE VERDADE.

    Obrigada por me dar a oportunidade de reler esse trecho do livro (que eu nem me lembrava mais).

    Te desejo muita saúde e paz… porque o resto é viver…..

    Um beijo grande

    Ana Tereza Santos

    ______________________________________________________________________

    Teka, perdi as palavras depois de ler tanta coisa tão linda que você escreveu sobre mim. Muitíssimo obrigada. quanto a ídolo, Tekinha, pelo-amor-de-deus-ou-de-qualquer-outra-entidade, me destitua do posto (risos) . É demais.

    Um beijo enorme
    Alena

  4. Ah, eu lembro do filme, e de ter lido o livro na escola…Preciso adquirir esse livro. Obrigada pela lembrança!

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    O melhor, Mani, é que eu li o livro na vida, não pela escola. E foi mais saboroso ainda. Sabe que eu ficava lendo e relendo só para chorar mil vezes?

  5. Impossível não se comover….
    Impossível não se encantar com a sutileza com a qual o autor passa a noção dos valores que estão tão esquecidos atualmente…
    Este livro foi o primeiro livro que minha mãe me deu… e só de pesnar nele sinto as lágrimas chegando de mansinho…
    Espero que esse seja o primeiro livro que meu filho leia também… se depender de mim, vai ser!
    Obrigado pela lembrança de uma época tão linda chamada infância…

    Felicidades e até!

    __________________________________________

    Bruno, legal seu depoimento, volte outras vezes.

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