* Este post deve ser lido ao som de Debaixo d’água e Agora de Arnaldo Antunes na voz de Maria Bethânia. Ouça aqui.
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“Mas tinha que respirar… todo dia, todo dia, todo dia”.
Toda vez que passamos por uma situação extrema, um redemoinho de emoções e sensações nos engole sem piedade.
” Agora que agora é nunca/ Agora posso recuar”
Ano passado, fui vítima de um assalto que me legou uma condição embrionária, condição de espectadora do existir. É que, durante duas horas e vinte minutos, lutei corpo a corpo com um marginal, bandido, drogado e psicopata pela minha vida, pela vida de minha filha e pela vida da babá dela. Nós fomos surpreendidas na madrugada, eu, deitada na cama, dormia o sono dos que trabalhariam na segunda-feira e elas, o dos inocentes.
O estrondo da porta dos fundos sendo arrombada com violência me acordou desesperada e já dei os gritos lancinantes de quem sabia o pior a fim de acordar a rua inteira e chamar a atenção desesperada para a minha casa, a minha condição. Encontramo-nos todos na sala e ele, com a faca na mão direita gritou tanto quanto eu. Pegou a empregada, mas eu a puxei e , com um olhar tirano e sem dizer uma palavra sequer, comuniquei-lhe que pegasse Alice e não a largasse por nada neste mundo. Ela entendeu.
Trocamos de lugar e eu fui empurrando-o para a cozinha quando o horror começou. Perdi honestamente a conta de quantos golpes de faca peguei no ar. Só sei que a frase que mais repeti seguidamente na minha vida inteira foi : “vá embora, por favor!”.
“Sem saber quanto este momento poderia durar…”
E sem saber se este momento realmente acabaria… “todo dia, todo dia…”
“Agora sinto minha tumba/ Agora o peito a retumbar”
Braço, faca, cabelo, luta, perna, braço, lâmina, dedo, sangue, braço, horror, braço e uma tatuagem, domínio, autocontrole (im)possível.
Olho desvairado, agreste, exorbitante, mau. Mal maior evitado. Não sei como, lembrei-me de quando era criança e assistia Bruce Lee com meu pai e ele me dizia: “olhe nos olhos de seus inimigos”… “conheça-os”. E eu não parava de fitá-lo. Tentando, tantas vezes inútil, dominá-lo, não demonstrar o medo que me escorria pelo corpo e endurecia de fel e razão o meu estar viva ali.
“Agora meu avô já vive/Agora meu filho nasceu”
Pensando em Alice, lutando por ela, consegui me desvencilhar, abrir a porta, uma, duas, três, quatro, cinco vezes… não, ninguém apareceu. “Agora abrem uma porta/Agora não se chora mais”. Entre os vivos não achei ajuda, não achei resposta, não achei socorro. Nada achei. É o peso em toneladas da solidão absoluta, a denotação mais cruel da solidão. E a ameaça atingia minha filha, que chorava com a babá desesperada em outro cômodo. Eu voltei todas as vezes em que vi a escada vazia, retornei todas as vezes e o agarrei pela camisa, sempre antes que pegasse Alice e a luta recomeçava. Não sei se havia lua naquele dia, mas se ela existia, estava banhada de sangue. “Agora diante da parede/Agora falta uma palavra”. Apelei em gritos de silêncio para os mortos. Chamei meu avô Antônio. Luz impotente. Chamei meu avô Gilberto. Baixo demais para o adversário. Chamei meu pai, minha mãe, minha avó Neyde. Por favor, implorei. Chamei tio Sérgio, talvez loucos se entendessem. E chamei Igor. Desvario ou não, lembrei-me de que meu primo falecido há pouco tinha o tamanho dele, do bandido que me queria matar a qualquer custo insistentemente. E fui conseguindo dominar não sei com que força os braços dele, sempre sem tirar os olhos, na ponta dos pés para parecer maior do que eu era…acuada, na parede, lutando desesperada para viver. Para manter-nos vivas todas.
“Só faltava respirar. Mas tinha que respirar…”
E a Mulher do Médico de Ensaio sobre a cegueira também me ajudou a encarar com frieza e raciocínio a situação. Não sei também como nem por quê. Mas me lembrei da lista de características que um psicopata reúne, assunto de trabalho no curso de Psicologia quando fui professora e trabalhamos o tema. Li mais de 120 trabalhos…E , naquele desespero todo, na luta insistente pela vida, legítima defesa absoluta, fui mentalmente ticando os itens, um por um, à medida que tentava construir um diálogo que reconstruísse a narrativa de vida do assassino em potencial e me libertasse, como à jornalista em Hannibal.
O sangue do ferimento feito à faca já me lavara a camisola de cetim, inutilizada; os vidros quebrados na cozinha e os quadros da parede caídos no chão estariam no dia seguinte cobertos de pó de perícia…
Duas horas se passaram, nada de socorro real, eu via o dia amanhecer em assassinatos concretizados diante de tanta ameaça e tentativas dominadas com meus fracos braços de então. Um primo meu diria: mãe é bicho, é fêmea, daí você retirou as forças: do seu útero. Deve ter sido.
A adrenalina me dava uma lucidez impensável nestas circunstâncias.
“Agora não me despedi/ Agora ainda estou aqui”
Ele titubeou três vezes, indicialmente. A primeira, quando lhe tentei falar e fazê-lo falar sobre sua mãe. Acalmou-se por minutos, desesperou-se ao fim e tentou mais uma facada, duas, três. Prometeu que me mataria e após mataria a própria mãe “para que ela não morresse de desgosto dele ter matado”.
Mais conversa, sou professora, dou aulas amanhã, quer estudar? Preciso dormir, meu chefe vai brigar se eu me atrasar, vá embora.
Insano. Inexplicável. Irrepetível. Bárbaro.
Titubeou também com as palavras infância, abuso sexual e animais. Chorou e me contou parte de sua desgraçada biografia. Mas suas mãos em posição de ameaça iminente, no alto, afiadas facas: vermelha e preta. Nova luta, novos golpes. Muito desespero.
E a palavra Bíblia o fez chorar. No mesmo momento em que eu a proferia, pedia silenciosamente a meus orixás que me protegessem.
E consegui lhe dar um copo d’água, com todos os movimentos controlados, explicando-lhe tudo detalhadamente, pensando em como reagir, dar o golpe certeiro, libertar minha filha e sair ilesa (?).
“Mas tinha que respirar… Todo dia. Todo dia, todo dia…”
A polícia bateu na porta e anunciou a sua presença com toda a voz grave que só a polícia pode ter. Desesperou-se ele, correu para pegar Alice, puxei-o e gritei baixo para que tivesse calma e fizesse silêncio. E alto, para fora:
– Vá embora, policial, aqui não está acontecendo nada.
-Senhora, eu sei o que está acontecendo. Se você não abrir a porta, vou arrombá-la. A casa está cercada.
– Você não pode fazer isso, tem que ter um mandado. É invasão de domicílio. Fere o direito constitucional do cidadão.
Foi o tempo necessário entre o titubeio do policial e o atordoamento que minhas palavras causaram no outro, bandido, que me fizeram pôr uma escada entre nós e assim o fui empurrando e convencendo a ir embora pelos fundos e a se esconder na escuridão. Para nos salvarmos todos.
Lembrei-me de Eloá. E temi muito a desgraça e atingirem Alice.
Então, consegui fechar a porta com força e gritar para a empregada correr e sair e consegui também sair pela porta , dando de cara com o policial que estava com a arma empunhada e quase atirou em mim à queima-roupa pelo susto e surpresa de que foi tomado. “AGORA ABREM UMA PORTA / AGORA NÃO SE CHORA MAIS”. Entraram pela casa, vasculharam os fundos, mas ninguém mais o pegou.
Faz seis meses.
A empregada ainda caiu da escada ao correr atordoada e desesperada com minha filha no colo, que saiu , como os anjos, incólume.
“Debaixo d’água, protegido, salvo, fora de perigo
Aliviado, sem perdão e sem pecado
Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar”
Denúncia. Relato no meio da rua e da madrugada. Cinco policiais, duas mulheres humanizavam mais ainda o grupo que , com os olhos lacrimejando, ouvia-me contar o desespero daquela que seria a pior de todas as madrugadas da minha vida. Apagou em dor a noite em que esperei a minha mãe morrer: eu, encolhida na minha cama com os cabelos molhados.
Trocar de roupa. Vestir por cima um vestido emprestado que me deram. Lavar-me de todo o sangue e de todo o fétido odor de morte, banho inútil de pia. Delegacia. Rua deserta na madrugada. Um vazio que prenunciava o que viria. E que se instalou.
“AGORA PASSA A PAISAGEM
AGORA NÃO ME DESPEDI
AGORA COMPRO UMA PASSAGEM
AGORA AINDA ESTOU DAQUI
AGORA SINTO MUITA SEDE
AGORA JÁ É MADRUGADA
AGORA DIANTE DA PAREDE
AGORA FALTA UMA PALAVRA
AGORA O VENTO NO CABELO
AGORA TODA MINHA ROUPA
AGORA VOLTA PRO NOVELO
AGORA A LÍNGUA EM MINHA BOCA”
Depoimento. Chegada de parentes. Mensagens desesperadas intercambiando alívios. Delegado. Delegada. Escrivão. Policial. Etecétera e tal. Manhã chegando, Nina Rodrigues, exame de corpo e delito. E aquele verde fedorento das paredes mais acuava todas as vítimas que se amontoavam sem nome nas cadeiras insensatas.
“Mas tinha que respirar” quando a vontade era fugir nem se sabe para onde, talvez para a morte paradoxalmente.
Doze horas depois, retornei da torpe odisseia e multiplicavam-se parentes na sala enquanto eu me despedia horrorizada da casa que fora da minha família mesmo antes de eu nascer, há cerca de 50 anos. Eram paredes que eu não queria mais. Paredes que não me protegeram. Portões e muros frágeis diante da minha condição humana.
“Agora não me despedi”
“Agora ainda estou aqui”
Foragida, carro trocado, sem casa, sem teto, só malas. Medo de voltar. Medo de sair. Medo de estar. Atropelaram-se casas, apartamentos, corretores, imobiliárias, telefonemas, anúncios de jornal, e o dinheiro faltando no banco.
“Debaixo d’água se formando como um feto
Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia”
Casa da irmã de minha mãe. Minha tia. Como ela. Eu feto e embrião. Companhia, mão necessária.
Ajuda de pessoas amigas (poucas). Ajuda de parentes (poucos). E, aos poucos, as caixas que levavam a minha história foram sendo descartadas tão sem sentido e sem valor e carregadas para lá e para cá até que pousaram incertas no que seria uma fortaleza para mim.
Quanto se perdeu? Não sei. Quanto tive? Não inventariei.
Certeza real de que nada de valor me levaram da madrugada de horror: três vidas ainda.
“Debaixo d’água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d’água ficaria para sempre, ficaria contente
Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d’água, protegido, salvo, fora de perigo
Aliviado, sem perdão e sem pecado
Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar”
Se pudesse, nestes seis meses, do novo apartamento não teria saído. Se saí, realmente, sei que nem me lembro, embora todos os dias fosse trabalhar.
Só sei que agora quero ouvir (psicótica?): já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou, já passou.
Seis meses e então a sensação exata é que:
“Agora posso recuar”.
Uma liberdade de quem escolheu viver, pôde ficar viva. A minha existência é agora, sinceramente, uma licença poética. Perdi o medo da morte.