Sou mulher. Sou mãe. Sou profissional. Sou órfã. Sou tia. Lavo muito bem, de tirar mancha de vinho, mofo e chocolate; passo roupa de deixar vinco para se ir empetecado ao tribunal; cozinho (com prazer, engenho, beleza e arte); brinco maluca com crianças, educo e ensino coisas do mundo, da escola e da vida. Fantasio e me fantasio com os pequenos. E com os grandes também. Troco encanamento, sifão e conserto goteira com a famosa fita veda rosca. Sei que a preta é para eletricidade, isolante. Troco lâmpada, resistência de chuveiro, spot de luz, espelho de luz e de tomadas. Sei ligar aparelhos eletrônicos e deixar todos eles com a mesma hora, certinha, lá com fuso de Brasília. Sei limpar o ar condicionado e ligá-lo sem controle. Amo eletrônica. Tenho senso estético, sei combinar cores, tenho boa orientação geográfica e dirijo bem. Estaciono em qualquer vaga. Ainda que não tenha quase nada de espaço para manobra. Limpo casa como ninguém. Sei me comportar socialmente, bordar, beber em todas as taças e comer com todos os talheres. Converso sobre quase tudo e, quando não sei o assunto, sei prestar atenção e ouvir para aprender. Adoro dar aulas, criar intertextos e representar papéis em classe. Rir com meus alunos e fazer eles lerem os livros que eu amo e que podem ser importantes para si.
Sei andar de bicicleta, amo o vento no rosto. Caminhar na praia descalça. Gargalhar com os amigos sem parar. Fazer festinhas de aniversário, lembrancinhas, bolo e docinhos. Sei ligar o foda-se. Dormir só 15 minutos profundamente. Amo estudar e viajar. São duas viagens que me aprazem. Fotografo. Escrevo. Blogo. Ensino. Reviso.
Não sei cantar afinado (exceto umas três vezes por ano). Não costuro (ainda). Não sou desportista ativa (mas quero ser). Nado. Ando. Não gosto de correr há muito tempo.
Sobrevivi a diversos golpes: perdi pai, perdi mãe, perdi avós. Separei-me. Crio sozinha uma filha. Fui assaltada e quase morta. Sobrevivi. Escolhi VIVER. E ser feliz sempre. Sempre.
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Essa sociedade que está hoje dando os parabéns aqui e ali, alguns com risinhos irônicos e piadinhas infames, é a mesma que não nos perdoa (ah, mas há muito eu já me perdoei!). É a que nos quer magra, dentro de padrões por vezes quase impossíveis. Se magra, com botox. ‘Plastificada’. 24h sorrindo, no salto alto, maquiada. E sexy. É a que nos cobra se não somos um sucesso absoluto na profissão. Se não ganhamos mais que fulano ou cicrano. se não trocamos de carro todo ano e não vamos a New York ao menos uma vez por ano. Só para comprar.
É a sociedade da fofoca, que devassa a vida alheia em busca de temas para criticar. Comezinhos. É o disse-me-disse.
É o mundinho de quem encontra padrões pessoais para moldar os outros e quer enquadrar todo mundo na sua ótica, embaixo do seu nariz.
É a sociedade ainda com ecos patriarcais, que paga menos a mulheres, que emprega mais homens e que ainda os respeita mais. Só eles gritam. Só eles falam alto. Mulher chora. Sim, eu choro – e sei chorar muito. Mas não desperdiço minhas lágrimas e sei vertê-las sozinha. Ou em público. E jamais me envergonhei.
É a sociedade cheia de preconceitos contra a mãe solteira (helloooo!!! Terceiro milênio, viu?), que lhe cobra um marido para que seja enfim feliz (?!) como se felicidade dependesse de ter um homem ao lado. (E esquecendo-se exatamente de que muitas que mantêm casamentos falidos é que são infelizes para sempre).
É a sociedade que julga culpadas as vítimas de estupro. Que aponta o dedo às mulheres que sofrem agressão física. Que riem da desgraçada sina de algumas. Ou as criticam sem dó.
É a sociedade que impõe à mulher mãe e profissional obstáculos que fazem ela abandonar o trabalho ou os filhos; que a demite porque falta ou chega atrasada em dias de sufoco absoluto.
É a sociedade pronta para consumir o Nan, mas que lhe aponta o dedo na cara se você não dá o peito. e se amamenta também.
É a sociedade que ainda diz que mulher não pode fazer sexo livremente, não pode escolher parceiros e ter uma transa sem amanhã. Cintos de castidade psicológicos: puta, vadia, vagabunda…
É a sociedade ainda com ecos fortes de um passado opressor…
Dela, eu não quero nem aceito flores nem falsos parabéns. Posso comprar as minhas rosas e os lírios e girassóis de que tanto gosto. Há quem a gente preze e que saiba nos dar flores: as pessoas doces com quem convivemos. Os amigos, gente como nós, de verdade.
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Ao invés do Feliz dia da Mulher hoje, poder-se-ia começar a praticar o maior respeito de todos os dias. Vale mais.
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Por saber disso, o meu presente é sempre que posso ( às vezes quando não posso também). Os meus carinhos não se economizam, as minhas palavras não se calam, o meu abraço não se cansa. Todo dia é um dia de festa, de comemorar minha vida. E , quando eu estou cansada até não poder mais ou naquele ponto que só a fluoxetina salva, sei também derramar as minhas lágrimas, tomar o meu banho demorado e dormir o meu sono merecido.
É isso. Sim, dia da mulher não é comemoração de loja de perfume. É (era) para ser o dia de reconhecimento de um lugar mais humanizado e digno para todas nós. Sem distinções.