Homens e mulheres

Professores fazendo concurso: sapato ou tênis, pólo ou camiseta, jeans ou sarja, uma caneta e a carteira, além da expressão no rosto: vou tentar, quem sabe? Professoras fazendo concurso: roupa melhor do guarda-roupa diário, unhas pintadas ontem, escova no cabelo, maquiagem , bolsas novas e impressionantes, salto alto novinho, pasta com documentos mil, perfume e cara de impáfia e superioridade: a vaga é minha, o que é que você quer aqui?

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Estado civil: pé com as unhas pintadas de verde e podóloga atrasada uma semana…

Bom, nenhum problema feminino que um sapatinho fechado não resolva. Mas você gosta do pé lisinho, hidratado, as unhas em dia… “pé de gente” , como fala para a pedicure toda vez e ela se acaba na gargalhada. ‘Ué, e do outro jeito era como? Pé de quê?” Ao que responde: de dinossauro, de troglodita… dos tempos da caverna, menos de gente! (mais gargalhadas dela).
Então você namora longamente o algodão e o frasco de acetona, toma coragem, mata a preguiça hercúlea e vai até lá, pega-os, dá um jeito legalzinho nas mãos … até que o diabo verde da limpeza sai escondido e vai tomar a cerveja dele porque hoje é quarta, véspera de quinta e prima da sexta. E então se instala aquela preguiiiiiiiiiça insana e você decide (Oh, my God!) que é melhor mesmo calçar o sapato fechado ao invés de simplesmente gastar três minutos a mais esfregando as unhas e tirando o momento Incrível Hulk de lá. Tá.
É… Era você que ia ao salão sexta, ia sábado, ia domingo no shopping (mas odeia shopping aos domingos) e adia para segunda… e terça passou e hoje foi quarta e deixou para quinta, amanhã. É. Foi você mesma que optou por isso. “Ô tempo que me incomoda é ficar parada esperando fazerem as unhas…”
Mas você, com sua cara de pau, ou melhor, com suas unhas radioativas, vai sair com o rapaz justo no meio da semana e apela, rezando para a 
nossa-senhora-da-sapatilha-mostarda-fechadinha, para que a salve de si mesma , do seu momento green Kafka lá nos dedões do pé, que agora já estão bem ocultos… pega a chave do carro e sai faceira.
Conversa vai, conversa vem, toque daqui, riso dali, cheirinho, beijinho, mão na mão… abraço e tudo na mais perfeita ordem. 
Até que a lei de Murphy se impõe e… o bonito resolve agarrar suavemente os seus pés e tira-lhe o sapato com a frase cinderela : “ai, deixa eu sentir o seu pé”.
Sim, você poderia ficar em pânico. Poderia sair correndo para sempre pelo mundo, poderia culpar sua filha-pequena-pintadora-de-unhas-verdes-e-amarelas-e-roxas. Poderia mentir que sua manicure está acidentada e que você só confia nela. Poderia ir ao banheiro e nunca mais voltar. Poderia, simplesmente, se jogar no mar da Pituba e nadar até a África… mas não. Dá uma risada gostosa, ao mesmo tempo em que ele lhe calça rápido a sapatilha, assustado com a cor.
E continua, sem muito desespero, a fazer o que estava fazendo: carinho.

Sinto muito

A vida é sempre assim: um dia a felicidade bate em tua porta; noutro, um fio de tristeza escorre do teu rosto. Ao menos são bálsamos para viver, estas batidas. É Pandora insistindo em não morrer para que o imperativo permaneça: a vida.

De todas as frustrações, a que me angustia de verdade é o sentimento de impotência e falência. É aquele baque que dá na gente, aperta horrorizado o peito, quando sabemos que , ainda que de mãos livres, não atadas, nada podemos fazer de real. É a hora em que se depende do outro, em que se tem que esperar o outro, em que os humores, as razões e os sentimentos do outro é que vão decidir o que a atinge. E não você. Não as suas razões. Não os seus quereres. Não a sua emoção, o seu arbítrio ou o seu desejo. O máximo que lhe cabe é comunicar com delicadeza, torcendo para surtir o efeito desejado e despertar no outro o desejo de mudar. Quimeras!

E eu que nunca pensei que fosse chorar por causa de uma dificuldade de minha filha na escola, que nunca pensei que fosse me atingir algo da sala de aula, posto que estou nela quase todos os dias e conheço bem as suas nuances… me vi toda frágil, embrulhada em mim mesma quando a professora, delicadamente, me disse que ela resistiu a fazer a atividade, demorou e ficou em dúvida, embora depois a completasse: era o cartão do dia dos pais.

Não sei. Não só. Enfim. O fim. Quiçá. Talvez. Que seja.

Um dia, quando caí do cavalo e a carruagem passou por cima de mim, atropelada fiquei zonza e levantei cambaleando sem saber por onde ir, mas indo. É que eu descobri muito cedo o quanto a vida é imperativa. E vive-se. É viver. Viver. Viver. A ordem universal até que. Até que. 
Então, estropiada nestes desmazelos da vida para comigo, sem saber bem o raio que me atingiu, o erro que cometi, o destino que me era reservado, fechei-me debaixo d’água, lá onde tudo era permitido e protegido como num útero prolixo de sensações em concha. Só. 
Espuma e tempo, bruma e vento. Nada. Neblina. Nada. Rotina. Nada. Sozinha. Nada. Só o aperto furacão para dentro, tufão ao contrário no corpo. E o tempo.
Só.
Até que.
De gota de tempestade, de rasgo de si, de mim mesma. De espasmos. De dor, de grito e de medo. De solidão. De sensação. De desconfiança erroneamente aprendida por necessidade de sobrevivência. Falência. 
Até que.
Neblina e bruma. Isso mesmo.
Só isso. Tudo isso. E mais escuridão. 
Depressão.
E o tempo e o luto. E o luto e o tempo. Só o tempo. Só. Sozinha. 
Vagando. No nada.
Apenas. Só. Sozinha. No nada. 
Apenas.
Um copo. Nenhum copo. Sem copos.
Um copo. Dois copos. Dois copos. Dois copos. Três copos. Um copo. Um copo. 
Mais um e mais um e mais um. Um só. Só um.
Dois copos. Três copos.
De repente, taças. 
Amigos.
Abraços.
Acalantos.
Amassos.
Necessários. 
Então. 
Até que.
Até que enfim.
Vislumbre do fim.
Alegria na janela, na porta entreaberta. No telefone. Na campainha. Na companhia. 
Dois. Três. Seis. 
Amigos.
E gota, e passo, e abraço, e doce, e espaço. E vida. E vida. E vida. Sorrisos. Só. 
Com risos. Sorrisos. Não só.
Então.
Até que.
Por quê?
Não importa se quê.
Para quê?
Passou, está passando. O passo. Mais outro. 
Enfim.
O fim? 
Não sei.
Mas é o novo.
Começo.
Enfim.
Não só.