O curió nunca mais cantou (republicado)

Publicado por: Alena Cairo em: 30 junho, 2006

Trilha sonora do post: Aquarela

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo e com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo… num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu.”

O tempo muitas vezes nos passa desapercebido. Ontem à tardinha, com o pôr-do-sol e a T.P.M. chegando, calculei-o. Faz já 11 (em 2011 são 16 anos). Então a sensação exata de um terço da minha vida caiu de forma bombástica sobre mim (hoje 44% da minha vida).

Ele era o galã. Bonitão. Todas as histórias falam disso. De um homem de 1,86 de altura, loiro, olhos cor de azeitona, braços fortes, peito largo, carro bonito. É, é a cara dele falar de carro bonito. Impossível esquecer a camisa aberta e o correntão de ouro contrastando com a loirice de seu peito. E o cabelo fino voando ao vento. Se eu fosse menino, seria o seu companheirão. Só que nasci mulher. E virei a sua princesinha.

Foram só dois anos em que fui filha única, mas os mimos me estragaram para todo-o-sempre-amém. “O que você quiser, eu faço por você, minha filha”. “Qualquer coisa, pode pedir a seu pai”. Frases mágicas. “Não peça nada a ninguém, seu pai faz tudo por você”. E fez.

Bebezinha, com dois anos ou três, eu já queria que ele tirasse todas as pessoas da praia, para ela ser só minha. Imagina! O mar era todo meu, porque Deus fizera ele “só para mim”. Assim ele dizia de todas as coisas. Íamos, então, às praias desertas. Minha mãe ajeitava a feijoada ou a farofa e cia para o churrasco e nós viajávamos para longíííínquas enseadas, afastadas do centro urbano, onde eles pescavam em paz e a gente aproveitava para se sentir o centro do universo. Pai, mãe e filha. Depois, mais duas meninas. Itacimirim, Guarajuba, Barra do Jacuípe, a própria Praia do Flamengo, há 30 anos, era deserta. Lembro de irmos a Stella Maris pescar atrás do velho hotel abandonado. E não pensem que ele ficava absorto, não: cuidava da minha varinha de bambu também, que era grande demais para uma menina tão pequena ainda(talvez por isso eu tenha esta megalomania – risos).

“Pinto um barco a vela branco, navegando, é tanto céu e mar num beijo azul”

Amava muito o mar. Os barcos. Os trens. O avião. Os discos voadores. E a pipa colorida no céu, que eu também empinei com ele.

“Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar. Basta imaginar e ele está partindo, sereno indo, e, se a gente quiser, ele vai pousar.”

Livre arbítrio. Com ele aprendi que muitos caminhos diferentes levam ao mesmo lugar, que a rotina pode ser diferente todo dia. E que há também muitos diferentes lugares, porque o mundo é grande e pode caber num círculo de um compasso. Sim, ele gostava de desenhar.

Lá em casa, era uma sinfonia de curiós, seu passarinho preferido. E as gaiolas eram lindas, todas douradas. Me lembro do som sony prateado e do gosto por eletrônica que dele herdei. Havia um tal de um LP chamado O canto do curió que, segundo ele, servia para os bichinhos aprenderem a cantar. E a gente ouvia isso no finde a manhã inteira, quando parávamos em casa – coisa rara.

Sua máquina Olivetti era só nossa. Só nós dois datilografávamos. Ninguém mais pegava nela e aquele era talvez um símbolo secreto de uma confiança entre pai e filha que só os mais felizes conhecem: cumplicidade.

Ganhei Atari e a criatura superou o criador: eu, moleca, vencia todas as partidas de Pitfal e River Raid. No Enduro, ele era melhor.

Ensinou-me o nome de todos os carros e brincávamos de adivinhar qual seria o próximo a passar: chevette, fiat, caravan, puma, brasília, fusca, parati, dodge… eu sabia todos. Eu gostava, por isso, era de brincar de carrinhos com meu primo da mesma idade, sonhava com meu puma que ele me prometia para quando eu crescesse e virasse uma “cocota”,  mas também me lembro do dia em que ele me pegou dando de mamar à boneca feijãozinho verdinha de mão rosa e touca, na fila do ferry-boat, e se enterneceu. “Que bunitinho…Olhe, Ane, ela tá dando de mamar à bonequinha” . Senti tanta vergonha do peito que precisei virar mulher para deixar de senti-la.

Nós íamos à Fonte Nova torcer para o Bahia, o meu time por herança, mesmo que eu não assista hoje a um jogo sequer nem ligue para futebol. “Somos da turma campeã… somos da turma tricolor…” Todo domingo o hino tocava no seu carro. No meu, hoje, há no pára-brisa o adesivo do Baêa, pelo lado de dentro, porque só eu preciso ter as minhas recordações, não é?

Lembro que ele gostava de biquíne curto e nos ensinou que não havia imoralidade nestas coisas nem no namoro nem no sexo. Na adolescência, me levava sem ciúmes para ver meu namorado trinta vezes que eu quisesse. Festas? Fomos a todas. Ia levar e buscava sem reclamar uma vezinha sequer em qualquer madrugada e a qualquer hora. Dava carona a todas as minhas amigas, não importava onde morassem. Brotas, Itapuã, Ribeira ou Campo Grande.

Imoral para ele era a mentira. “Nunca minta para seu pai.” “A pior coisa do mundo é a mentira”. Aprendi a lição, embora soubesse quando a cara descarada dele estava rindo por mentir. E que cara! Ensinou-me as malandragens da vida: sabíamos como ‘roubar’ no jogo de baralho, sabíamos que a bolinha na forminha de empada no meio da rua era um truque desonesto para pegar dinheiro dos bestas. Mas colávamos moedas com superbonder no chão de bares ou restaurantes para rir do pessoal que se abaixava (ô crueldade!)

Nunca chegava em casa de mãos vazias. A gente descia as escadas correndo e perguntava : “trouxe o que para mim, meu pai?”. Umbu, seriguela, bombom, tamarindo, um pintinho de dar corda, lápis de cor (adorava desenhar), uma tranqueira vendida por camelô… o que fosse.

Comíamos sonhos na padaria e pão doce, algodão doce e maçã do amor nos circos. Os parques… fui a todos. A roda gigante era a nossa preferida. E o carrinho bate e volta me fez chorar, fazendo que ele entendesse que eu era mesmo menina. Para ele, o palhaço era o melhor, ria sempre de todos eles e dos programas bestas da tv. E se auto-intitulava o PAI-AÇO. Nestas horas, inchava o peito, fazia muque e careta, dizendo que era o Incrível Hulk. Juro que eu tinha medo dele ficar verde e saía correndo, acreditando mesmo que isso fosse possível.

Pintava, brincava, dançava. Rebolava se a música da moda era Requebra (Olodum). Chamava minhas amigas de macacas… e ria e ria e ria. Agora parece que eu estou vendo a gente chegando da praia, as três meninas de biquíne, mainha entrando em casa e a torneira do jardim sendo aberta. Ele lavava o carro e a gente ajudava. Nesta maluquice, daqui a pouco já estávamos todos brincando de abominável homem das neves, branquelos da espuma do sabonete. E eu aprendi com ele a fazer bolha de sabão com a boca. Até hoje faço isso!

Quantas vezes saímos de carro pelo mundo, 3, 30, 300 ou 3000 km livres? Viajar era lei, curtir a vida um prazer. As coisas funcionavam assim: “vamos ali” – e as malas sempre estavam prontas lá em casa porque, de repente, o passeio virava uma viagem. “Nunca fique sem fazer xixi, peça sempre que seu pai pára o carro.”

Bom, que mais dele herdei? O nariz, o cabelo mais claro (o de minha mãe era quase negro), o porte, a alegria, o falatório, o gosto por papéis e curiosidades. O gosto também pelas pessoas e pelos lugares. Dou carona a quem precisa sempre, não tenho preguiça de dirigir, faço favores. E ralho com voz de trovão, como ele bem sabia fazer. Nunca me bateu. Sequer um tapa na mão.

Com 11 anos, eu caí da escada de casa e quebrei o braço. Aquele homem gigante, em poucos minutos arrastou-se até a escada. Recém operado, sentado e impotente diante do meu braço quebrado, chorava e perguntava: “meu Deus, por que isso não aconteceu comigo? Por quê?” Foi assim que eu descobri o que é amor. E que só um pai é capaz do incondicional.

“ E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar. Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar. Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá… numa linda passarela que um dia enfim… descolorirá”.

“Te amo e o tempo não varreu isso de mim.”

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Dia dos Pais – homenagem póstuma

Meu avô Antônio foi o homem mais íntegro que eu conheci na vida. Exemplo de família, de bonança. Viveu para seus filhos e netos, viveu para sua família. Deixou-nos de legado principal a exata noção do quão importante é estarmos todos juntos, sermos éticos, termos amizade e, acima de tudo, valorizarmos os nossos laços afetivos.

Teve uma esposa, oito filhos, quatro genros, duas noras, 15 netos e hoje, se fosse vivo, teria 9 bisnetos (e mais um dois a caminho).  Soube agradar, respeitar, considerar. Foi um homem gigante, um forte como o sertanejo de Euclides da Cunha. E também um homem extremamente simples.

Lembro-me sempre, ao falar dele, do seu olhar de amor, da forma como nos enxergava, da verdadeira adoração que nutria por nós, suas netas. Lembro-me de quando eu ansiosa e alegre o esperava na escada de casa, chegado do interior, e de como ele trazia suas sacolas cheias de  coisas da roça, como o meu beiju que sempre vinha. E lembro-me dos banhos de mar que ele gostava de tomar aqui em Salvador.  E dos picolés que a gente chupava na praia: de coco e também de amendoim.

Lembro-me com ternura de como ele cuidava da gente, capaz de ficar sozinho com todos os netos e deles dar conta: brincar, distrair, consertar isto e aquilo, dar banho, pentear cabelo e arrumar todos sentadinhos na sala para ver televisão e comer um prato de biscoito de coco com uma colher de manteiga no final da tarde.

Quando jantávamos na casa dele, sempre havia a carne do sol com rodelas de tomate e um pouquinho de farofa. E a gente comia de tudo, mas ficava ali, esperando ele repartir entre todos o seu quinhão de carne.  Era como se fosse o prêmio. Também ele abria a lata de goiabada e o pacote de creme de leite e ia fatiando o doce de acordo com a quantidade de pessoas. Eu era privilegiada, ele sabia que eu adorava creme de leite e a minha taça sempre tinha mais que a de todo mundo. Mas eu sabia esperar para ser a última e ninguém ver a quantidade a mais. Era um segredo nosso.

Lembro-me dele escondendo a minha bicicleta porque eu morava em Salvador, armando a rede de vôlei que ele mesmo fez, na chácara, para jogarmos quando eu levava a minha bola. Lembro-me dele fazendo um balanço para a gente brincar e de guardar as goiabas para “as meninas de Salvador”. Lembro-me da cumplicidade dele com minha mãe, lembro-me de como ela o chamava de painho e como era doce este seu tom.

Porque a gente gostava, sempre tinha suco em sua casa; nunca me esqueço dos liquidificadores de maracujás fresquinhos, suco que ele mesmo fazia, às vezes tão doce. E pão com queijo, manteiga e presunto quentinho, que “estas meninas de Salvador” adoram.

Nas festas de São João, meus olhos brilhavam com a fogueira que ele se orgulhava de fazer. E a gente pequena, eu e Maurício, éramos seus ajudantes na roça: para lá e para cá, como carrapatos, atrás dele o tempo todo. Juntando lenha, enfeitando com bandeirolas, lavando amendoim e descascando milho. Tudo uma novidade muito grande, especialmente para quem vivia “na capital”.

Uma vez ele comprou uma máquina de moer manual para fazer caldo de cana. Bastava minha mãe pisar na chácara e lá íamos nós, girar aquela manivela infinitas vezes até tomar a garapa deliciosa com gelo e canudinhos de plástico nos seus inesquecíveis copos de alumínio.

Arrancar coco, encher o carro de mão e depois vê-lo homem abrí-los com facão nos fazia destemidos de tudo: ele poderia nos proteger contra qualquer coisa. A gente bebia até a barriga ficar enorme, um dois ou três, o que aguentasse. Os canudos eram cortados dos talos das folhas de mamoeiros e davam um gosto diferente à água, um sabor de passado bem vivido. Ficávamos jiboiando no sol com a barriga estourando de tanto coco. E rindo sem parar, como bem cabia a netos felizes.

Depois, ao entardecer, era a hora de ” uma volta de carro de mão”. E a gente sentava no carrinho enquanto ele passeava conosco. Às vezes, cabiam até três netos, os menores.

Ele nunca conseguiu nos proteger direito foi da chuva: gritava no terreiro para entrarmos e a gente pulava sem parar só para se molhar toda mesmo. Arrodeávamso e escolhíamos o caminho mais longo. Tomávamos banhos de poça d’água e corríamos de relâmpagos até ele gritar com sua voz de trovão “já para dentro, seus moleques!” Foi ele também que me ensinou a olhar as árvores, os animais e o céu para descobrir se choveria.

Ele tinha uma risada gostosa, um riso diferente, só dele. Uma gargalhada sonora. Lembro-me dele rindo ao ver novelas – noveleiro nato! O Bem Amado passou quando eu era criança e nunca me esqueço nem do sorriso dele nem do de minha mãe ao ver Odorico Paraguaçu e as três cajazeiras (apelido que virou nosso, três netas de Salvador) . Chico Anísio, Jô Soares e Os Trapalhões. Ele adorava! Seu riso enchia a sala inteira e eu nem sei se a gente assistia a ele ou ao programa.

Catar mangaba embaixo do pé para fazer sorvete. Juntar castanhas para assar. Vê-lo lendo o jornal todos os dias, balançando-se na sua cadeira de fios. Ou juntar os netos para chupar uma lata de umbu até os dentes doerem. Nossos pais não precisaram pedir para que ele brincasse de vovô com seus filhos. Deixava a gente brincar no escuro de cabra-cega, a gente fazer arrelia com os gatos e, de vez em quando, pular nas camas da Barroquinha.

Na ilha, dava a cada neto um chaveiro e a gente ia colecionando as chaves de abrir quitute para, como ele, imitando-o, pensarmos que tínhamos o poder de abrir tantas portas, fechaduras e cadeados.

Tudo que a gente gostava achava na casa  dele: bicicleta, doces, balas, alegria e aconchego. Um avô bem grande, diante de nosso tamanho criança, e gigante, se considerarmos as boas lembranças. Ele, às vezes com barba por fazer, arranhava em beijos os nossos rostinhos, dava uns tapas fortes nas coxas grossas e enchia de cheiros os nossos cabelinhos molhados depois do banho. É amor, é avô. É uma saudade que eu tenho hoje. Uma saudade muito gostosa.

O vendedor de sonhos

Não sei que mágica é esta que o colorido dos brinquedos e a fofura dos infláveis provoca nas crianças.

Foto: Alena Cairo

Aquela que há em mim fica deslumbrada, sempre extasiada ao ver o homem que passa na praia sob um guarda-sol de ilusões… Ele vende a alegria, ele vende a diversão, vende a ternura do amor de pais e filhos, vende o riso solto e o correr atrás da bola descalços na areia. Essas coisas que não se compram.

Este homem é deus. Ele vende o intangível.

Espinafre e hipérboles animadas

Quando eu era pequena, pedi a minha mãe que comprasse espinafre lá naquela seção de hortifrutigranjeiros, palavra que eu achava a coisa mais maluca do mundo – levei um tempão para entender esta aglutinação. Ela estranhou e disse que não, que eu estava inventando moda. Mas sempre fui ladina na argumentação e aquelas aulas de ciência valiam para dizer que criança tem que comer folha, fruta e verdura. E eu repetia direitinho o argumento.

Minha mãe comprou e fui para casa sob a ameaça: tem que comer tudo que tem criança por aí no mundo passando fome e meu dinheiro não é para se jogar fora.

Fui feliz para casa carregando o saco do Paes Mendonça. Planejava o alimento de uma vingança maquiavelicamente articulada.

A empregada lavou tudo e fez a salada, que eu comi alvoroçada, sem achar muito gosto na folhinha, mas saboreando a desforra. Fui para a sala, provoquei-o e fiz o muque. Nada. Não cresceu nem um pouquinho o bíceps nem o tríceps. Dei-lhe um murro no braço e recebi outro que doeu. Meu primo da mesma idade era ágil, menino ( e só as meninas sabem o que isso significa nestas províncias machistas) e batia em mim que era uma beleza.

Decepcionada, lavei uma lata de leite condensado e coloquei todo o espinafre do outro dia dentro para ver se era assim que fazia efeito. Nada também. Apanhei de novo.

E foi assim que eu descobri o que era ficção. Nunca mais dei crédito ao marinheiro.

Canto solidário

Às vezes, não sabemos os porquês. Noutras, desconfiamos. E há as horas em que temos certeza. O dia era quente, ensolarado, havia festa, havia gente, havia mar. No calado das desilusões delas, a pseudo fantasia do tudo perfeito. Nenhuma conversa entre ambas, nenhuma palavra. Ou poucas. Sobre outros temas e minúcias. A hora passou, o sol se escondeu, a festa acabou e o povo partiu. Elas duas, sentadas, choravam em silêncio. Sabiam-se mulher naquele instante de impotência.

Crime cometido

Rasgar o passado não é fácil, mas é preciso.

Há quem creia impossível. Eu creio nas mudanças que vêm com o tempo. E no prazo de validade que todas as coisas têm. Inclusive nós, seres humanos perecíveis.

Inquietações de saber-me pesada com tantas recordações: âncoras a me prender na projeção futura e necessária. Cortar os grilhões, rasgar os papéis rabiscados de tintas. Em minhas mãos lavadas a todo instante, poeiras que carregam o sangue de um passado tão vivido.

Sentei no chão de meu quarto, abri a pasta rosa, passei os olhos neste e naquele bilhete, cartão ou carta quilométrica ou expressa. É hoje apenas papel e rasguei-os todos sem dó nem piedade, mas sentindo um peito afobado e um passado que de mim talvez teimasse não sair. Quisera eu a metáfora perfeita de um escravo alforriado que ainda não sabe se teme mais o que passou ou o que virá. O que já foi não é mais. E nem eu queria que assim fosse.

Por outro lado, parece que me ver diante da que eu era há tempo me conduz ao conflito óbvio. Cartas e mais cartas e mais cartas de amor rasgadas, palavras que hoje perderam a coesão com suas companheiras de linha, rasgadas que foram. Agora, estão compatíveis com as emoções que há muito perderam o sentido, a lógica, a razão.

Fotos ainda registram o que não existe mais e nem o amarelar do tempo talvez apague tudo. Não. Não apagará. Mas há de esmaecer. Assim é. Assim será. É preciso mais tempo. Mais disposição para não se saber a si mesma, para deletar-se de si, desconstruir o que é memória apenas e apenas isso deve ser. Recordações.

Um homem só

A toada da canção entristece tudo … As bolsas sob os olhos parecem hoje ainda mais fundas, mais inchadas… Na moldura de um rosto másculo, os fios envelhecidos de uma barba por fazer quase grisalha. As marcas do tempo se percebem ainda mais nitidamente quando o olhamos varando os limites do físico e adentrando sua alma.

Tristeza. Solidão. Frustração. Certezas de ser só.  

O homem maduro, cansado da livre existência, mais uma vez constata o fim do romance que quisera eterno. Que faltara? É sempre assim. Despedaçado, passa os olhos pelo quase nada de pertences que lhe restam. Livros, roupas, discos, um som e … meia dúzia de itens mais. Que sentido há em querer os demais objetos ou móveis? Tudo pode ser refeito. Tudo.  

De relance, olha a estante repleta de livros e os sapatos na prateleira de baixo militarmente alinhados. Pode-se entrever uma sombra de solidão em seus olhos. Calado, caminha em direção ao quarto. Na cama, a mulher que fora sua até tão pouco tempo. À vontade, deitada está entregue ao deleite dos lençóis macios. Com certeza ela cheira. O doce cheiro de uma mulher…

Tira os olhos de cima do seu corpo, respeitoso pelo fim do relacionamento e , sozinho, fecha o armário de roupas ainda ocupado pelas suas camisas . Uma peça fica um tanto de fora e, delicadamente, com os dedos alisa a manga da camisa pra dentro da porta sanfonada. Nesse ritual tão mudo, parece querer entender os cuidados que outrora deveria ter tido. O silêncio está em sua alma, enche o seu corpo de vazios, corta a sua existência inteira. Tímido e silente, o adeus quase sussurrado ecoa entre as paredes que de tantos sonhos foram testemunha. 

Este homem é grande. Mas tão pequeno agora…

Alegria em potencial

A moça arrumou suas coisas. Ela separou, conforme mandam os princípios chineses, tudo que não usava há mais de um ano. Na lista, entraram cerca de 100 livros de língua portuguesa. Nada ultrapassado, velho ou inválido. Livro novo, com pouco uso, para boa consulta e estudo. Ensacou e pôs todos na mala do carro. O sebo pagou pouco. A moça não os vendeu então. Então a moça da história se lembrou de que há estudantes que querem ser professoras. E ela foi lá. Distribuiu os sacos pesados. Uns olhos brilharam entre todos.

A moça não sabia, mas dormiu com um ar de felicidade muito reconfortante porque descobriu que fora da poeira alérgica de uma estante na prateleira esquecida, os livros carregavam alegria em potencial.

Hipoglós tem cheiro de mãe

A minha um dia sorriu,

levantou-me as pernas com dobrinhas,

limpou-me as sujeiras

e conversou comigo enquanto punha as fraldas brancas

arrematadas por alfinetes de bichinhos.

Lembro um rosa que minhas bonecas herdaram e que me promoveu à condição de mãe de brinquedo pelos doces e saudosos longos anos de infância.

A pomada existe ainda e, se normalmente seu cheiro de óleo de fígado de bacalhau me repele a maioria das horas, hoje me transportou a um tempo quando havia abraço, segurança e ninar de sonhos.

Ela cantava o “faz três noites que eu não durmo, ô, Lalá , pois perdi o meu galinho, ô, Lalá…” Eu sei que eu era bebê e sorria, prestando muita atenção àquele olhar umbilical que até hoje vejo no espelho, nas lembranças, nas fotografias, nos guardados da memória.

Ela usava trança e trançava o cabelo com um lenço de seda colorido. Cheirava gostoso, não a perfume francês ou a qualquer um dos baratos. Tinha o cheiro que só as mães sabem ter. E eu, já moça, deitava em seu colo, inventava que achava que tinha pegado piolhos (aos 24 anos!) só para sentir o eterno deslizar de sua mão em meus cabelos.

Assisti tantas vezes às novelas no sofá estampado, juro, apenas para estar perto dela e ver-lhe o riso, o olhar marejado ou a incontida indignação.

Eu nunca a soube humana, limitada, nem animal. Minha mãe é de uma perenidade que só ‘a dona de tudo’ , a que ‘vale mais para mim que o céu , que a Terra, que o ar’, poderia alcançar. E como faz falta!

Peguei a pomada. Li o modo de usar: ‘limpe cuidadosamente a pele do bebê e aplique uma camada da pomada sobre a área a proteger, massageando suavemente’. Passei um tanto no meu rosto hoje com espinhas. Porque a criança que ainda sou precisava dormir com o cheiro de proteção que só a sua mãe lhe poderia dar.